5.7.08

Uma grande paródia pelo São João, com mordomos, zabumbas e descantes.

Agora, pelo São João, houve eleições na UM para escrutinar os representantes dos funcionários, que deveriam ter assento nos órgãos superiores da Universidade, Senado e Assembleia. Depois que o Tribunal anulou as eleições, os órgãos passaram a funcionar sem representantes deste corpo da Universidade. Há um ano, as eleições haviam contado com uma lista de funcionários, chefes de serviços, afectos à Reitoria. Essses funcionários, ao perderem as eleições, levaram o caso a Tribunal. Pediram a repetição do acto eleitoral, dado o facto de terem cometido erros processuais nas eleições que organizaram. As eleições foram, pois, repetidas, com nova derrota, assinale-se, dos chefes de serviços.

As circunstâncias que rodearam o novo acto eleitoral, bizarras umas, caricatas outras, levaram-me a escrever o seguinte texto, que divulguei na rede interna da UM, nas vésperas da eleição.

Os mordomos juntaram-se para organizar a festa dos zabumbas. Nomearam uma comissão, bem à medida, e convocaram todos os bombos para a festa. Como era de uso, os bombos deveriam afinar o tom pelo ram-ram de um reco-reco e a melodia deveria ser de uma nota só. Mas os bombos entraram em rebelião e não quiseram a festa dos mordomos. Deixaram de ter paciência para as cantigas, sem graça, que repetiam uma nota só. A comissão decidiu multiplicar os bombos como peixes no Mar da Galileia. Lançou redes para mais de oitocentos bombos, embora não houvesse mais do que seiscentos. Mas até com redes meio vazias, se esperava uma pesca messiânica, com as redes a rebentar de bombos.

O que valeu aos zabumbas foi a inesperada intromissão de um romeiro, que nunca foi em cantigas de ram-ram, reco-reco e nota só, e que desconfiou da festa organizada pelos mordomos. O romeiro bateu o pé, e não sendo possível exterminá-lo, o remédio foi mesmo os mordomos meterem a viola no saco e adiarem a festa. Foi por essa altura que os bombos entraram em alvoroço e fizeram uma festa sem mordomos. Encheram as ruas de melodia e foram para os salões de baile, volteando em danças ousadas e fazendo uso de um reportório variado de descantes.

Os mordomos não se ficaram. Queriam para os zabumbas uma festa à sua maneira. Era preciso suster aquele alvoroço das ruas e dos salões de baile. A haver festa, teria que ser de uma nota só. Foram queixar-se ao Juiz. E para levarem a sua avante, usaram de dissimulação. Ora, se há coisa que os mordomos sabem é o uso da dissimulação. Haviam feito o mal; fariam agora a caramunha. Foram então queixar-se ao juiz de que haviam organizado mal a festa, pelo que o alvoroço que havia nas ruas e nos salões de baile não podia valer. A festa das ruas e dos salões de baile não estava organizada consoante as regras. Havia que reconduzir os zabumbas à melodia de uma nota só.

Jogada de mestre. Os mordomos haviam organizado a festa dos zabumbas, mas como eles não alinharam pelo ram-ram do reco-reco e fizeram estoirar a melodia de uma nota só, queixavam-se ao Juiz de que se enganaram a organizar a festa. Um a um, foram passando pelo Tribunal os vários mordomos e os membros da comissão de festas. Todos afinados na dissimulação. «Sim, Senhor Doutor Juiz, nós organizámos mal a festa, que deveria ser de uma nota só. A festa que os zabumbas fazem não deve valer, porque quem decide das festas e do modo de tocar, de cantar e de dançar somos nós. Sem nós e a nossa melodia de uma nota só, a festa dos zabumbas é careta».

O Juiz aquiesceu. E fez muito bem. Festas para os zabumbas quem as deve organizar são os mordomos. Se os zabumbas quiserem cantar, devem fazê-lo sempre pianinho e numa melodia de nota só. E se a festa é outra, é porque o processo está errado. Os mordomos compuseram um ar severo. «É isso, Senhor Doutor Juiz, se estamos aqui é porque temos o sentido da responsabilidade, organizámos mal a festa, mas estamos dispostos a emendar a mão».

O Juiz mandou parar o baile, mas estabeleceu um prazo de noventa dias para o fazer. E decidiu também que os mordomos recomeçassem do princípio os preparativos da festa. Quem tenha olhado as coisas sem bem reparar, facilmente se convenceu de que os mordomos obedeceram à sentença do Juiz. Mas os mordomos são muito sabidos, pelo que apenas fizerem de conta que obedeciam. Para darem uma verdadeira lição aos zabumbas e lhes ensinar que as festas autorizadas são sempre de uma nota só, pararam a música logo no primeiro dia e empurraram-nos com violência para fora do salão de baile. Além disso, entenderam que nem sequer valia a pena repetir os preparativos da festa. Para o que importava mesmo, que era pôr os zabumbas a tocar a cantiga de uma nota só, serviria bem a cena final de um teatrinho de reis e bobos da corte, que prolongasse a festa de São João e o seu espírito de martelinhos e de alho-porro.

Os mordomos fixaram a festa para um dia a seguir ao São João. E ainda pensaram pedir de empréstimo uns gigantones e uns cabeçudos para integrarem a comissão de festas. Mas, reconsiderando, acharam que não valia a pena. A comissão tinha um larguíssimo traquejo na organização de festas de uma nota só e sabia muito bem como afinar os zabumbas pelo ram-ram de um reco-reco. O que a havia tramado antes fora um romeiro, que sem ter sido para lá chamado, se intrometera na organização da festa. Mas desta vez a comissão podia descansar. A festa só contava com mordomos e zabumbas. Nada poderia, pois, atrapalhar os trabalhos da comissão. Tão certa disso estava que até já havia encomendado o fogo. Também só morteiros de um estoiro só.

Os mordomos fizeram bem. Mesmo muito bem. Nunca, em largos anos, se dera pela presença dos zabumbas nas ruas e nos salões de baile. Até chegou a haver quem desconfiasse que eles fossem pés de chumbo, porque sempre tinham sido vistos amarrados ao cantochão do ram-ram de um reco-reco. Mas nos últimos tempos, os zabumbas haviam-se completamente transfigurado, passando a voltear pelos salões de baile em passos de dança variados. E a todos haviam surpreendido, cantando polifonicamente sonatas de grande qualidade melódica. Os mordomos viram bem o perigo que corriam, quando deixou de se ouvir o seu ram-ram de uma nota só. Tirar o pio aos zabumbas, logo na abertura do prazo dos noventa dias fixados pelo Juiz, era uma medida que se impunha e que apenas pecava por tardia.

Quando no salão de baile houve quem estranhasse a ausência dos zabumbas, um elegantíssimo bailarino, destro como ninguém na arte do reco-reco e das cantigas de uma nota só, colocou um ar grave e disse: «Vamos esquecer os zabumbas e as suas danças e descantes. Vamos tirá-los da fotografia deste salão. Como eles nunca aqui deveriam ter entrado, podemos decretar que eles nunca aqui estiveram».

Ouviram-se aplausos no salão de baile. A proposta, de tão airosa, maravilhou meio mundo. E foi assim que os mordomos puderam voltar ao sossego da sua cantiga de uma nota só, bem afinada pelo ram-ram de um reco-reco.